Atribuir características e sentimentos humanos aos pets é prejudicial e pode afetar a relação entre peludos e tutores
O que podemos esperar dos nossos pets? Damaris, uma mulher em torno dos 40 anos, esperou demais. Frustrada por não conseguir ter filhos, além de precisar lidar com a perda de um feto, adotou uma cadela e apostou todas as fichas da maternidade nela, inclusive deu ao animal o nome que sempre desejou batizar sua filha, Chirli. Como dedicação e amor não são retribuídos na mesma medida, a situação se complica, dando margem a decepções e a inseguranças.
Esse é o enredo do romance A cachorra, da colombiana Pilar Quintana, mas assemelha-se, até certo ponto, ao cotidiano de muitos “pais de pets”, afinal, considerar os peludos como filhos não é exclusividade da ficção. Obviamente, oferecer boas condições de vida aos animais de estimação é essencial, um pré-requisito básico de qualquer adoção, e inclui respeitar o que é inerente a esse universo. Ignorar essas características e atribuir traços humanos aos pets pode ser prejudicial.
Nesse viés, vale recapitular um pouco da relação humano-animal ao longo dos últimos tempos. Com a formação dos grandes centros urbanos e da verticalização das moradias, em meados dos anos 1980, no Brasil, essa amizade se estreitou bastante. Na recente pandemia de covid-19, testemunhou-se um contexto único de convivência restrita e intensiva das pessoas com seus pets. Para algumas famílias, foi positivo em vista da oportunidade de conhecer melhor seus animais; para outras, porém, foi estressante, dado que certos problemas comportamentais dos peludos aumentaram consideravelmente.
A estudante Lays Miranda recorda-se que, no início de 2020, decidiu, junto à família, adotar um cão para lhe auxiliar em suas crises de ansiedade, conforme recomendado pelo seu psicólogo. “Eu me preparei, fiz um enxoval para ela e fui buscá-la, estava muito animada.” A pequena Lessie, uma golden retriever de 45 dias, chegou ao novo lar, mas as coisas não saíram como o planejado. Em seu primeiro dia de adoção, chorou a noite inteira. “Cuidei dela como um bebê e senti um incômodo tão grande, pensava: ‘e, agora, virei mãe?’”.
O que parecia ser a saída para um problema tornou-se uma nova preocupação. Em mais uma crise de ansiedade, Lays foi parar na emergência do hospital, sentindo-se incapaz de cuidar da peluda e negando a adoção.
Curiosamente, os médicos avaliaram que a jovem estava passando por uma espécie de depressão pós-parto, só que de um pet, pois, segundo eles, a estudante enxergava na cadela um bebê, daí as crises. “Foi necessária uma maior adaptação minha do que dela”, lembra, aos risos.
Diferentemente de outros animais da raça, Lessie é bastante tímida e não costuma fazer amigos com facilidade. Para a família, esse comportamento mais arisco se deve à falta de socialização, devido ao isolamento social no período da pandemia. A golden se mostrava bastante medrosa e desconfiada na presença de outros pets e de pessoas desconhecidas; e, ao contrário de demais cães, quando via a rua, se escondia. Aos poucos, porém, está menos reativa.
Lays não vê problemas, até certo ponto, em tratar os pets como filhos. Reconhece, porém, que em algumas situações há uma preocupação desmedida por parte do tutor que pode prejudicar essa relação. Em sua casa, Lessie é a xodó da família. “Ela é mais mimada pelos meus pais do que eu e meu irmão”, admite.
A golden Lessie é como a filha caçula da família: recebe mimos e atenção de todos(foto: Arquivo pessoal )
Os riscos da antropomorfização
Para muitos, é natural que a forma humana de amar seja tratar o outro como se humano fosse, pois é o jeito que se sabe demonstrar cuidado e carinho. No caso dos animais de estimação — os quais não têm apenas sensações, percepções e necessidades expressas, mas também consciência de todos esses sentimentos e demandas —, a tendência é tratá-los como se fossem filhos.
O problema está em quando a antropomorfização impacta o bem-estar dos peludos ou dos tutores, visto que, por serem espécies distintas, têm habilidades e necessidades diferentes. Caso isso não seja compreendido, há o risco da convivência e da comunicação tornar-se bastante difícil e ruidosa para ao menos um dos lados dessa relação, quase sempre para o pet. Sendo assim, criam-se expectativas irreais e, consequentemente, frustração.
Conforme alerta Joanna Macêdo, médica veterinária especializada em etologia clínica, há situações nas quais a antropomorfização é tão intensa que o pet perde o direito de expressar comportamentos naturais básicos. Os impactos no bem-estar do animal são imensos, além de eles poderem sofrer distúrbios comportamentais sérios, como agressividade, medo, depressão e transtorno de ansiedade.
Para a especialista, a interpretação das emoções e reações dos peludos sob a ótica humana do que é normal, certo ou errado tende a atrapalhar no tratamento dos pacientes. “Já me relataram, por exemplo, que o gato fez xixi no travesseiro da namorada do tutor por ciúmes; ou que o cão urinou fora do lugar para provocar. São coisas que escuto muito em consultório. E, geralmente, quando vamos avaliar, esse pet possui alguma dificuldade urinária ou até mesmo de acesso ao local onde costuma eliminar sua urina”, esclarece.
Demais exemplos dessa idealização de atributos humanos nos animais estão em situações nas quais se espera que os pets se comportem ou se pareçam conosco. O uso de perfume, que atrapalha o faro e confunde a expressão de odores, algo tão importante para eles; o estilo de vida sedentário e mais confinado, que dificulta a socialização e restringe a prática de exercícios físicos; e o compartilhamento de alimentos, por vezes, inadequados para os peludos. Nesse ínterim, o mercado de produtos para pets também exerce influência considerável.
A médica veterinária Meiry Cristine, pós-graduada em medicina felina e atuante na clínica Pet com Amor, lembra que os distúrbios comportamentais, resultantes de tais atitudes dos tutores, podem resultar, ainda, em problemas de saúde como dermatites atópicas, lambeduras psicogênicas e cistites, que são infecção e/ou inflamação da bexiga.
Esclarecendo os termos
É comum utilizarmos a palavra humanização para nos referirmos ao ato de dar características humanas a coisas e seres não humanos. Entretanto, o termo adequado é antropomorfizar, visto que o verbo humanizar, na área da saúde, significa tornar benévolo, tratar com acolhimento (como em humanização do parto).
Estabelecendo limites
Com informação, pode-se elaborar e adaptar o afeto humano à forma animal. A afetividade pode ser intensa e abundante desde que não gere prejuízos para um dos lados dessa relação. Assim, para mostrar aos animais de estimação o quanto eles são especiais em nossa vida, é preciso entender quem eles realmente são e do que precisam, para oferecer o mínimo de bem-estar. O mais importante é construir um relacionamento respeitoso.
Tudo começa antes mesmo da adoção, visto que é necessário conhecer a rotina da família e o ambiente disponível. Deve-se oferecer aos peludos, diariamente, oportunidades de exercitar o corpo e a mente, por meio de passeios, enriquecimento ambiental e brincadeiras que desenvolvam suas habilidades inatas, além de favorecer sua socialização. Ademais, o tutor deve atentar-se para os horários das necessidades fisiológicas inerentes à espécie, como a hora de dormir, de eliminar urina e fezes, de brincar etc.
“O animal precisa expor seus extintos naturais. Portanto, cães precisam correr, brincar, interagir com outros cães, rolar na grama e na terra, latir. Gatos, que também estão cada dia mais dentro da nossas casas, também precisam ter suas particularidades respeitadas. Não coloque em cima dos pets uma responsabilidade sobre algo que não irão entender; basta amá-los da forma como são”, conclui Meiry.
Quem concorda com essas percepções é a bacharel em direito Márcia Gargalhone, tutora dos gatos Lisa e Bart, adotados há cinco anos por sua família. Quando os conheceu, recebeu do Clube do Gato, ONG que cuidava dos peludos, várias orientações para manter os pets seguros e confortáveis. Por morar em apartamento, o primeiro passo foi colocar uma tela, a fim de evitar qualquer queda.
A ideia foi tentar manter os hábitos e os instintos da dupla. Então, além dos itens necessários, como caixinhas de areia e potes de ração, Márcia investiu em fontes de água, arranhadores e alguns brinquedos, orientados pela própria veterinária. A tutora se posiciona contra atitudes que prejudicam o bem-estar dos pets e cita como exemplo mandar pintar os pelos dos cães com cores diferentes, enfeitar com adesivos e pintar as unhas.
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